segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Férias no mato

Depois de muita insistência, Bia acabou cedendo ao convite da amiga Mari para passar uns dias na casa de seus primos. A relutância de Bia era porque os primos de Mari moravam no meio do mato, literalmente, e ela era uma urbanóide assumida.

- Tem certeza que não tem perigo, Mari?
- Deixa de besteira Bia, meus primos nasceram lá e eu já cansei de passar férias com eles. Estamos bem, não estamos?
- Hum, tá bom. – Bia respondeu, não muito satisfeita.

Sem muito entusiasmo, Bia fez a mala, não esquecendo as coisas que Mari havia indicado, como repelente (colocou logo dois!), sandálias confortáveis, tênis e um casaco.

E lá se foram Bia e Mari para o meio do mato. O receio da primeira só não era maior do que a empolgação da segunda. A viagem, menos desconfortável do que Bia imaginara, serviu para que ela começasse a diminuir a tensão. A receptividade dos primos de Mari, e o calor da casa simples, mas aconchegante, contribuiram ainda mais para que os temores de Bia se dissipassem. Até que, um dia, estavam todos sentados do lado de fora da casa, quando Bia sentiu uma espetada leve na lateral do tornozelo direito. Assim que olhou, deu um grito desesperado e começou a pular desengonçada. Gritava e sacudia o pé enquanto os demais tentavam acalmá-la para que pudessem ver o que era. Bia, finalmente, colocou o pé no chão e gritava apontando com o dedo:

- Ali, ali, vejam, tá grudado no meu tornozelo.

Mas ninguém via nada:

- Onde, Bia, cadê?

Inconformada que ninguém visse o “monstro” que ela estava vendo, criou coragem e abaixou-se para apontar.

(Neste ponto da história será necessário abrirmos um parêntese. Acontece que Bia era míope, mas não assumia. Sempre achou que dava para se virar sem precisar de óculos, até o presente momento. Agora, uma vez que nossos queridos leitores foram esclarecidos desse fato, continuemos a história).

Qual não foi a surpresa e o constrangimento de Bia quando percebeu que o tal “bicho” grudado no tornozelo, não passava da fivela preta de sua sandália, que, provavelmente, a espetara devido ao jeito que estava sentada por cima do pé.

Com o dedo sobre a fivela, teve vontade de sumir dali, desaparecer de vergonha. Ela ouvia as vozes das pessoas a sua volta, todas preocupadas em saber o que a havia picado. Sem coragem de admitir o mico diante de Mari e seus primos, continuou gemendo fingidamente e desabotoou a fivela. Aproveitando-se de uma sinal vermelho de nascença, o qual esperava que Mari nunca tivesse reparado, Bia levantou-se quicando num pé só e dizendo que estava ardendo muito.
Levaram-na para dentro de casa e colocaram seu pé “picado” sobre uma cadeira. Logo, todos estavam examinando o sinal de Bia como se fosse uma queimadura causada por algum bicho que conseguira escapar.

- Você já viu algo assim, primo? – Mari perguntou.
- Assim, assim, vi não, mas já ouvi falar. – e virando-se para o irmão. – O que cê acha?
- Tô achando que é sério... muito sério.

Bia começou a ficar preocupada com a proporção de sua mentira e resolveu diminuir o tamanho da “coisa”.

- Ah, gente, deixa isso pra lá. O bicho já foi embora e nem tá mais ardendo.

Ao dizer isso, os primos de Mari se entreolharam preocupados e o mais velho respondeu.

- Vou lhe dizer uma coisa. Só tem um bicho nessa região, capaz de fazer alguém pular como cê pulou, gritar como cê gritou, deixar essa manchona vermelha que nem queimadura e parar de arder assim, de repente.
- É verdade, meu irmão tá certo. Só tem um bichinho danado capaz de fazer isso.
- É o verme chupador zumbi! – falaram os dois ao mesmo tempo.
- O quêêê???? – Bia e Mari seguraram a mão uma da outra apavoradas. A primeira pelo tamanho da mentira que havia criado e a segunda pelo medo do que aconteceria à amiga, pensando ser verdade.
- É isso mesmo. Só pode ter sido o verme chupador zumbi que fez isso. – o primo mais novo de Mari falou com os olhos arregalados e muito gestual. – Ele gruda na pessoa, coloca os ovinhos invisíveis sob a pele, morre e cai.
- E mesmo que não caísse, do jeito que cê pulou, ia cair. Eu nem sei como seu pé continuou grudado na perna, parecia até que cê tava com os pés na brasa. – completou o primo mais velho.
- O que que a gente faz agora? – Mari perguntou desesperada, cheia de culpa. – O que que vai acontecer com o pé da Bia?

Os primos se entreolharam de novo. Bia estava catatônica. Jamais imaginou que uma mentirinha fosse tão longe. Como voltar atrás e dizer que foi só a fivela da sandália que ela confundiu com um bicho porque se recusa a usar óculos?

- Vamos levá-la ao hospital?! – Mari deu um pulo e pegou sua bolsa.
- Tá doida prima? – bradou o primo mais velho. – O hospital mais próximo fica a duas horas daqui, até lá, os ovinhos já se espalharam pelo pé, pela perna e os bichinhos vão nascer dentro dela e ela vai morrer em menos de 24h!
- O quêêê???? – Bia e Mari começaram a chorar, ambas pelo remorso.
- Morrer? Minha amiga não pode morrer! – Mari gritou.
- E não vai! Nós sabemos exatamente o que fazer! – disseram os primos.
- E o que é? – perguntaram as garotas.
- A gente vai colocar álcool nessa mancha e tacar fogo.
- Como é que é???? – Bia e Mari olharam com incredulidade.

Colocar fogo no próprio pé já era demais. Ela ia confessar a mentira. Bia respirou fundo e criou coragem.

- Pessoal, pessoal, preciso que vocês prestem atenção no que eu vou dizer. Não teve verme chupador zumbi nenhum. Eu inventei essa queimadura, que na verdade é um sinal de nascença, porque eu confundi a fivela da minha sandália com um bicho e fiquei com vergonha do mico. Mas, agora, isso chegou longe demais. Me desculpem pela encenação, mas tá tudo bem.

Os irmãos e Mari se entreolharam.

- Hahahahahahahahahahahahahaha. – os três riram, até que Mari transformou seu riso em lágrimas de compaixão.
- Ela tá com medo. – disse Mari fungando.
- Ela não tá acreditando que vai morrer. – disse o primo mais novo balançando a cabeça.
- Vamos ter que fazer isso na marra. – completou o primo mais velho determinado.

(E, agora, faz-se necessário um segundo e último parêntese. Seria de mau gosto descrever o desespero de Bia quando os dois irmãos partiram para cima dela, enquanto Mari foi correndo à cozinha buscar o álcool e o fósforo. E de pior gosto, ainda, o momento em que o ato se concretizou).

Meses depois, Mari mudou de emprego e nunca mais teve coragem de procurar Bia.
Seus primos, agora, vão de vilarejo em vilarejo dando o depoimento de como salvaram a vida de uma pessoa, vítima do verme zumbi chupador.
E Bia, bem, ela faz um tratamento carésimo para melhorar o aspecto da pele queimada e, por causa disso, ainda não teve grana para comprar os óculos. Mas vai ter em breve porque, outro dia, ela confundiu uma garrafa de desinfetante com bebida isotônica e fez um estrago no estômago. Só que, dessa vez, ela arrumou um advogado, processou o fabricante e vai ganhar um bom dinheiro. Pena que a maior parte dele vai ter que ser usada para reconstruir o dedão do pé direito, que foi parcialmente decepado quando ela caiu da bicicleta porque não enxergou uma pedra no meio do caminho. Mas um dia ela vai fazer seus óculos, ah, vai!

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O passarinho

Reginaldo era o faz-tudo da empresa. Não tinha nada que não pedissem a ele.

- Reginaldo, pega meu vestido na lavanderia? – pedia Clarisse.
- Reginaldo, vai lá no banco e paga essa conta pra mim. – mandava Daniel.
- Ô Reginaldo, o pé da cadeira quebrou, dá um jeito nisso faz favor? – era outro pedindo.

E, assim, o dia de trabalho passava rápido. Ele mal chegava, já estava na hora de ir embora. Sempre ocupado, sempre de um lado para o outro. Sempre disposto.

Era Sexta-feira, fim de expediente e o chefe mandou chamá-lo. Quando entrou na sala, Reginaldo logo reparou numa gaiola coberta em cima da mesa.

- Reginaldo, o negócio é o seguinte, preciso que você leve essa gaiola neste endereço. – e lhe entregou um papel com o nome da rua e o número de onde deveria ir. – A pessoa só vai estar lá até às 18h, então, pega o dinheiro do táxi com a Clarisse e se manda! E cuidado com isso, ok? Na Segunda-feira você vai buscar a gaiola antes de vir para cá.
- Sim senhor! – o faz-tudo respondeu com um sorriso.

Reginaldo pegou a gaiola com o maior cuidado e saiu da sala. Clarisse lhe deu um envelope com R$100 para o táxi de ida e de volta.

- O chefe disse que não precisa troco.

Então, ele pegou o dinheiro e foi embora carregando a gaiola. Chegando à rua, olhou o relógio e viu que ainda era quatro e meia da tarde. Foi aí que Reginaldo achou que seria uma boa ter aqueles R$100 no fim de semana e, para isso, bastaria ir de ônibus. Não titubeou. Olhou o endereço no papel que o chefe lhe dera e seguiu de busão mesmo. O que Reginaldo não contava é que um acidente envolvendo um caminhão tombado causaria um engarrafamento fora do comum, atrasando-o mais do que poderia. Nervoso, Reginaldo desceu do ônibus às 18h05 e, correndo com a gaiola na mão, chegou ao endereço quinze minutos depois da loja de animais já ter fechado. Sem ter o que fazer, resolveu levar a gaiola para casa.

- Caramba, o que que eu digo para o chefe na Segunda-feira?

Preocupado, Reginaldo chegou em casa e colocou a gaiola sobre a mesa da sala. A mulher foi logo perguntando do que se tratava.

- Que ideia é essa Reginaldo? Não vou ficar limpando caca de passarinho não, hein? Vou logo avisando!
- Esta gaiola não é minha não, é do chefe. Ele me pediu para levá-la numa loja, mas eu cheguei lá e já tinha fechado. O pior é que ele me deu o dinheiro para o táxi e eu resolvi ir de ônibus achando que daria tempo, mas me ferrei. Agora, nem sei o que digo a ele na Segunda-feira.
- E que passarinho que tem aí?
- Você sabe que eu nem olhei? Eu acho que a gaiola tá vazia, porque não ouvi um pio sequer.
- E pra quê que ele ia te dar uma gaiola vazia pra levar pra loja?
- Ah, sei lá, vai ver que ele comprou um passarinho e me mandou à loja justamente por isso.
- Você não perguntou homem de Deus?
- Eu não! Eu só faço o que me pedem. Não faço perguntas.
- Mas, então, levanta logo esse pano que eu quero ver se tem ou não um passarinho aí dentro!

E Reginaldo fez o que a mulher pediu. Mas foi só levantar o pano para ele perder a respiração e começar a gaguejar.

- Que... que... hã? Co-como assim?
- Fala homem, que que tem aí dentro? Um urubu?
- Não mulher, tem um passarinho morto!! Eu matei o passarinho do chefe!
- Morto? E agora? O que você vai fazer? Teu chefe vai te mandar embora por isso!
- Será?

E naquela noite Reginaldo não pregou o olho. Não parava de pensar na burrice que tinha feito pegando aquele ônibus lotado, tendo que sacudir a gaiola pra tudo que é lado. – É claro que o passarinho não aguentou o sacolejo e o calor infernal. Bateu as botas! O que é que eu faço?

A mulher, solidária ao jeito dela, contou pra vizinha o ocorrido e, em pouco tempo, o drama de Reginaldo se espalhou na vizinhança. Muitos vieram oferecer um passarinho vivo para ele substituir o pequeno defunto, mas eram completamente diferentes do passarinho do chefe.

- Toma aí Reginaldo, leva esse que lá em casa eu tenho muitos.
- Mas esse é amarelo e o morto é verde, não dá pra usar o teu.
- Tá, tudo bem, eu só queria ajudar. Quanta ingratidão!

Reginaldo estava desesperado. Já passava do meio-dia de Domingo e ele ainda não sabia o que fazer. Até que, por volta das 14h, a mulher entrou em casa gritando.

- Reginaldo, Reginaldo, corre aqui!
- Que que foi? Por que essa gritaria?
- O primo da dona Josefa tá aqui e disse que tem um monte de passarinho em casa, inclusive verde. Falou pra você ir lá com ele escolher que, com certeza, vai ter um igual.

E lá se foi Reginaldo correndo com a gaiola na mão, agarrado àquela possibilidade. Quatro horas depois, ele voltou sorridente para casa. Com a gaiola e um passarinho verde e vivo!

- Conseguiu Reginaldo? – perguntou a mulher.
- Consegui! Mas me custou os R$100 do táxi que eu quis economizar. No final, esse dinheiro não era para ser meu mesmo. Ah, mas eu tô aliviado. Graças a Deus! O chefe nem vai perceber, é igualzinho! Agora, eu vou dormir, porque eu tô um bagaço!

No dia seguinte, Reginaldo chegou mais tarde na empresa, para parecer que tinha passado na loja. Foi direto à sala do chefe e colocou a gaiola sobre a mesa.

- Obrigado Reginaldo. Eu estava ansioso para vê-lo. Você deu uma olhada nele?
- Dei não senhor. Do jeito que eu levei a gaiola, eu trouxe. Toda coberta.
- Então, fique aí para ver que belezinha.

Mas quando o chefe levantou o pano, fitou o passarinho verde, que piscava e olhava para todos os lados, e ficou mudo. Reginaldo não pôde acreditar. – Como ele reconheceu que não era o passarinho dele? Eram idênticos!

- Reginaldo, o que é isso?
- Ué, um passarinho verde chefe. – ele respondeu sentindo o coração apertar e pensando “estou frito”.
- Eu sei que é um passarinho verde, eu estou vendo isso!
- Então, não entendi sua pergunta...
- Reginaldo, o passarinho que estava nessa gaiola, estava morto! Eu te mandei levá-lo na loja, porque minha filha estava inconformada e eu prometi que iria mandar empalhá-lo!