- Que é isso homem? O que aconteceu? – esbravejou ela.
Ele olhou-a com os olhos vermelhos banhados pelo sangue da
ira e resumiu:
- Tô puto!
A esposa, sem saber ainda o motivo da raiva, tratou logo de
imaginar se seria ela a causa daquele rompante e com voz mansa perguntou
cautelosamente.
- Mas, o que aconteceu para você estar assim?
- Há semanas alguém vem roubando minha sobremesa. Todo dia
eu compro uma torta pela manhã e coloco na geladeira do trabalho. Acontece, que
eu não consegui comer uma sequer, porque o larápio chega sorrateiramente e
ataca sem ser visto ou deixar rastro.
- Ah, é isso? – a mulher comentou sem dar importância.
Carlos explodiu.
- E você acha que não é nada demais? O que dá o direito
desse gatuno comer o que não é dele? Eu volto do almoço salivando pela torta e
ela nunca está lá! Nunca! Entendeu? E se eu começasse a usar seus cremes de um
milhão de dólares ou tomar suas pílulas de dieta? Como você se sentiria?
- Eu ia ficar puta da vida com você. – ela reconheceu.
- Pois, então, não sei mais o que fazer para pegar o safado!
- Bem, não adianta você ficar assim. Por que não deixa para
comprar a torta depois do almoço?
Carlos fuzilou-a com o olhar.
- Por um acaso você se casou com um imbecil? Não acha que eu
já não pensei nisso? Acontece que a loja das tortas é aqui perto de casa, ou
seja, eu compro antes de ir para o trabalho.
- Ah... – ela preferiu não fazer mais nenhum comentário.
- Não acho justo eu deixar de comprar minha sobremesa porque
um ladrãozinho de tortas, sem-vergonha, se apropria do que é dos outros na
maior cara de pau!
- Você não tem ideia de quem possa ser?
- Não. Eu já pensei, pensei e nada. Somos doze ao todo no
setor, incluindo o vice-presidente, o diretor financeiro e a assessora do
presidente.
- Você acha que essas pessoas estão acima de qualquer
suspeita?
- Na verdade, acho que nenhum dos doze têm o perfil de quem
rouba torta alheia. Ao mesmo tempo, acho que pode ser qualquer um. – ele
desabafou com um suspiro.
O resto da noite seguiu e o mau humor de Carlos não diminuiu.
Jantaram em silêncio. Assistiram TV em silêncio. Foram para cama em silêncio.
Por volta de uma hora da manhã, a esposa acordou repentinamente com uma ideia
na cabeça. Virou-se para o lado e sacudiu Carlos.
- Amor, amor, acorda. Pensei em algo que pode ajudar.
O homem, ainda adormecido, tentou abrir os olhos em vão. A
mulher, então, acendeu a luz do abajur e sacudiu-o mais uma vez.
- Acorda Carlos, eu tive uma ideia para você pegar o ladrão
de tortas.
Apertando os olhos devido à claridade, Carlos esforçou-se
por mais alguns segundos, até que, finalmente, conseguiu encarar a esposa.
- O quê? O que foi?
- Estive pensando num jeito de você ferrar com esse gatuno.
- De que forma? – ele perguntou ainda sonolento.
- Injete um laxante na torta. Se o safado começar a ter
diarreia toda vez que comer sua sobremesa, ele vai acabar desistindo.
Carlos refletiu sobre a sugestão e com um sorriso amassado
beijou a mulher na testa.
- Você é ótima! Excelente ideia!
Ambos voltaram a dormir, mas, antes de se entregar aos
braços de Morfeu novamente, Carlos se deliciou com a dor de barriga que iria
causar no salafrário. Algumas horas depois, o despertador tocou e Carlos se
levantou. Dessa vez, foi ele quem sacudiu a esposa para acordá-la. Com alguns
resmungos, ela o olhou como se apenas seu corpo estivesse ali, sem que a alma tivesse
tido tempo de retornar do mundo astral.
- Hã?
- Onde está o laxante?
- Quê? – ela balbuciou de olhos fechados novamente.
- O laxante, querida, onde está?
- Ah, tá no armário do banheiro, é um vridrinho branco,
procura lá.
Carlos foi ao banheiro e abriu a porta do armário sob a pia.
Estava tão excitado com o plano, que mal podia esperar. Viu de cara uma
seringa, e achou que seria muito útil na execução do plano, colocou-a no bolso
da calça. Em seguida, pegou um vidrinho e colocou-o no outro bolso.
Uma hora depois, Carlos chegava ao trabalho feliz da vida.
No carro, havia injetado o líquido na torta e, agora, caminhava-se para a copa
do escritório, onde guardaria sua torta na geladeira.
Como de costume, ao retornar do almoço, o ladrão já havia
atacado e sua torta já não estava mais lá, mas ele não se importou, apenas
sorriu para si mesmo e pensou “É hoje que esse biltre se ferra!”
Chegou em casa feliz. A esposa assistia à novela. Ele
jogou-se ao lado dela no sofá e relaxou.
- Você desistiu de executar o plano? – ela perguntou
curiosa.
- Claro que não! A essa hora o maganão já deve estar sendo
coroado em seu trono!
- Ué, como assim? Eu vi que o laxante ainda está lá no
banheiro. – ela estranhou.
- Não, não está, eu levei o vidrinho comigo. – ele respondeu
surpreso.
A mulher se levantou e saiu da sala. Menos de um minuto
depois, retornou com um vidrinho branco nas mãos.
- Olhe, o laxante está aqui.
O homem olhou curioso.
- Mas, mas... eu peguei um vidrinho... ele era... ele era...
transparente...
- Você pegou o vidrinho transparente? – ela deu um grito de
horror.
- Sim, sim, acho que sim. Eu estava com sono ainda e
empolgado com o plano. Confundi branco com transparente. O que tinha naquele
vidrinho?
A esposa começou a chorar. Sentou-se ao lado do marido,
segurou-lhe a mão e disse com sofrimento e desespero:
- Veneno!
A mulher explicou que havia comprado o veneno para um rato
que há dias rondava pela casa, mas, como não tinham crianças, não se preocupou
em escondê-lo. Ambos se abraçaram e passaram a noite em claro, chorando. A
mulher sentia-se responsável. Ele, um imbecil que confunde branco com
transparente.
Pela manhã, ele pensou em ligar para o trabalho e dizer que
estava doente, mas desistiu. Mais cedo ou mais tarde teria que encarar o que
fizera. Tudo por causa de uma torta! – Mas por que esse infeliz tinha que comer
o que não era dele? – Não, não havia desculpa para o que fizera. Não se mata
uma pessoa por causa de algumas fatias de torta. Carlos vestiu-se de qualquer
jeito, despediu-se da mulher com um longo abraço e saiu para o trabalho.
Naquela manhã, ele não passou na loja das tortas.
Mal havia colocado os pés no escritório, um colega veio
correndo ao seu encontro.
- Já soube da última?
- Quem morreu? – Carlos perguntou sem pensar.
- Então, você já sabe? – o colega retrucou.
- S-s-sei o-o quê? – Carlos gaguejou.
- Que o vice-presidente morreu!
§§§
Carlos tentou abrir os olhos mas a luz ofuscou-lhe a visão.
Escutou vozes que pareciam vir de longe, mas não foi capaz de compreendê-las.
- Vejam! Ele está acordando! Afastem-se, afastem-se! Ele
precisa respirar.
Carlos sentiu um pano úmido sendo passado em sua testa e
peito. Tentou, mais uma vez, abrir os olhos. Aos poucos, foi tomando
consciência e percebeu que estava deitado no chão do escritório. Os colegas
todos o olhavam com surpresa.
- O que aconteceu? – Carlos perguntou confuso.
- Você desmaiou de repente. – explicou uma colega.
Foi, então, que ele se lembrou do motivo. Seu peito apertou
e uma angústia profunda invadiu-lhe a alma.
- O vice-presidente morreu? O “nosso” vice-presidente? – ele
checou, afinal, quem sabe não teria entendido errado?
- Sim, o helicóptero no qual estava caiu hoje às seis da
manhã, uma tragédia. Morreram as três pessoas a bordo: ele, o piloto e um jornalista.
Mas não pense nisso agora, temos que saber o que você teve.
Subitamente, Carlos sentiu-se melhor. Então, não fora ele
que matara o vice-presidente? Que alívio! Mas, logo em seguida, pensou que
ainda tinha um problema. Alguém comera sua torta envenenada. Com ajuda dos
colegas, ele se levantou e foi para sua sala. Não aceitou nenhum conselho para
ir ao serviço médico e passou o resto do dia trancado no escritório.
O dia de trabalho chegou ao fim e ninguém mais havia passado
mal. No dia seguinte, sexta-feira, não haveria expediente, pois seria o enterro
dos restos mortais das vítimas do acidente. Por sugestão da mulher, Carlos
continuou levanto a fatia de torta, para que ninguém desconfiasse de nada.
Mas isso foi há seis meses atrás e as tortas de Carlos nunca
mais desapareceram...
5 comentários:
Só faltava o jornalista e o piloto serem da empresa também!
É... e se o foi o piloto quem comeu a torta, então, foi triplo assassinato, rsrsrs.
Acho que foi a assessora do presidente pois trabalha com a imprensa. Roubou a torta e deu para o jornalista para agradá-lo. Este por sua vez, passou para o piloto pois devia estar de dieta.
Neyzinho, se você trabalhasse nessa empresa, estaria morto, não? kkkkkkkk, lembra da torta lá da gráfica? caraca!
OI, Cristiane, Sou Safira, amiga da Lenira e já trabalhei no CENPES e ai na biblioteca. Adoro ler e amei o seu conto, verdadeiramenre original.Quamdo for lançar o livro, convide-me. Continue escrevendo.
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