sábado, 2 de junho de 2012

O ladrão de tortas

Carlos chegou em casa batendo a porta. A mulher, que estava sentada no sofá assistindo a novela, assustou-se com o barulho, jogando para o alto a revista que tinha mãos.

- Que é isso homem? O que aconteceu? – esbravejou ela.

Ele olhou-a com os olhos vermelhos banhados pelo sangue da ira e resumiu:

- Tô puto!

A esposa, sem saber ainda o motivo da raiva, tratou logo de imaginar se seria ela a causa daquele rompante e com voz mansa perguntou cautelosamente.

- Mas, o que aconteceu para você estar assim?
- Há semanas alguém vem roubando minha sobremesa. Todo dia eu compro uma torta pela manhã e coloco na geladeira do trabalho. Acontece, que eu não consegui comer uma sequer, porque o larápio chega sorrateiramente e ataca sem ser visto ou deixar rastro.
- Ah, é isso? – a mulher comentou sem dar importância.

Carlos explodiu.

- E você acha que não é nada demais? O que dá o direito desse gatuno comer o que não é dele? Eu volto do almoço salivando pela torta e ela nunca está lá! Nunca! Entendeu? E se eu começasse a usar seus cremes de um milhão de dólares ou tomar suas pílulas de dieta? Como você se sentiria?
- Eu ia ficar puta da vida com você. – ela reconheceu.
- Pois, então, não sei mais o que fazer para pegar o safado!
- Bem, não adianta você ficar assim. Por que não deixa para comprar a torta depois do almoço?

Carlos fuzilou-a com o olhar.

- Por um acaso você se casou com um imbecil? Não acha que eu já não pensei nisso? Acontece que a loja das tortas é aqui perto de casa, ou seja, eu compro antes de ir para o trabalho.
- Ah... – ela preferiu não fazer mais nenhum comentário.
- Não acho justo eu deixar de comprar minha sobremesa porque um ladrãozinho de tortas, sem-vergonha, se apropria do que é dos outros na maior cara de pau!
- Você não tem ideia de quem possa ser?
- Não. Eu já pensei, pensei e nada. Somos doze ao todo no setor, incluindo o vice-presidente, o diretor financeiro e a assessora do presidente.
- Você acha que essas pessoas estão acima de qualquer suspeita?
- Na verdade, acho que nenhum dos doze têm o perfil de quem rouba torta alheia. Ao mesmo tempo, acho que pode ser qualquer um. – ele desabafou com um suspiro.

O resto da noite seguiu e o mau humor de Carlos não diminuiu. Jantaram em silêncio. Assistiram TV em silêncio. Foram para cama em silêncio. Por volta de uma hora da manhã, a esposa acordou repentinamente com uma ideia na cabeça. Virou-se para o lado e sacudiu Carlos.

- Amor, amor, acorda. Pensei em algo que pode ajudar.

O homem, ainda adormecido, tentou abrir os olhos em vão. A mulher, então, acendeu a luz do abajur e sacudiu-o mais uma vez.

- Acorda Carlos, eu tive uma ideia para você pegar o ladrão de tortas.

Apertando os olhos devido à claridade, Carlos esforçou-se por mais alguns segundos, até que, finalmente, conseguiu encarar a esposa.

- O quê? O que foi?
- Estive pensando num jeito de você ferrar com esse gatuno.
- De que forma? – ele perguntou ainda sonolento.
- Injete um laxante na torta. Se o safado começar a ter diarreia toda vez que comer sua sobremesa, ele vai acabar desistindo.

Carlos refletiu sobre a sugestão e com um sorriso amassado beijou a mulher na testa.

- Você é ótima! Excelente ideia!

Ambos voltaram a dormir, mas, antes de se entregar aos braços de Morfeu novamente, Carlos se deliciou com a dor de barriga que iria causar no salafrário. Algumas horas depois, o despertador tocou e Carlos se levantou. Dessa vez, foi ele quem sacudiu a esposa para acordá-la. Com alguns resmungos, ela o olhou como se apenas seu corpo estivesse ali, sem que a alma tivesse tido tempo de retornar do mundo astral.

- Hã?
- Onde está o laxante?
- Quê? – ela balbuciou de olhos fechados novamente.
- O laxante, querida, onde está?
- Ah, tá no armário do banheiro, é um vridrinho branco, procura lá.

Carlos foi ao banheiro e abriu a porta do armário sob a pia. Estava tão excitado com o plano, que mal podia esperar. Viu de cara uma seringa, e achou que seria muito útil na execução do plano, colocou-a no bolso da calça. Em seguida, pegou um vidrinho e colocou-o no outro bolso.

Uma hora depois, Carlos chegava ao trabalho feliz da vida. No carro, havia injetado o líquido na torta e, agora, caminhava-se para a copa do escritório, onde guardaria sua torta na geladeira.

Como de costume, ao retornar do almoço, o ladrão já havia atacado e sua torta já não estava mais lá, mas ele não se importou, apenas sorriu para si mesmo e pensou “É hoje que esse biltre se ferra!”

Chegou em casa feliz. A esposa assistia à novela. Ele jogou-se ao lado dela no sofá e relaxou.

- Você desistiu de executar o plano? – ela perguntou curiosa.
- Claro que não! A essa hora o maganão já deve estar sendo coroado em seu trono!
- Ué, como assim? Eu vi que o laxante ainda está lá no banheiro. – ela estranhou.
- Não, não está, eu levei o vidrinho comigo. – ele respondeu surpreso.

A mulher se levantou e saiu da sala. Menos de um minuto depois, retornou com um vidrinho branco nas mãos.

- Olhe, o laxante está aqui.

O homem olhou curioso.

- Mas, mas... eu peguei um vidrinho... ele era... ele era... transparente...
- Você pegou o vidrinho transparente? – ela deu um grito de horror.
- Sim, sim, acho que sim. Eu estava com sono ainda e empolgado com o plano. Confundi branco com transparente. O que tinha naquele vidrinho?

A esposa começou a chorar. Sentou-se ao lado do marido, segurou-lhe a mão e disse com sofrimento e desespero:

- Veneno!

A mulher explicou que havia comprado o veneno para um rato que há dias rondava pela casa, mas, como não tinham crianças, não se preocupou em escondê-lo. Ambos se abraçaram e passaram a noite em claro, chorando. A mulher sentia-se responsável. Ele, um imbecil que confunde branco com transparente.

Pela manhã, ele pensou em ligar para o trabalho e dizer que estava doente, mas desistiu. Mais cedo ou mais tarde teria que encarar o que fizera. Tudo por causa de uma torta! – Mas por que esse infeliz tinha que comer o que não era dele? – Não, não havia desculpa para o que fizera. Não se mata uma pessoa por causa de algumas fatias de torta. Carlos vestiu-se de qualquer jeito, despediu-se da mulher com um longo abraço e saiu para o trabalho. Naquela manhã, ele não passou na loja das tortas.

Mal havia colocado os pés no escritório, um colega veio correndo ao seu encontro.

- Já soube da última?
- Quem morreu? – Carlos perguntou sem pensar.
- Então, você já sabe? – o colega retrucou.
- S-s-sei o-o quê? – Carlos gaguejou.
- Que o vice-presidente morreu!

§§§

Carlos tentou abrir os olhos mas a luz ofuscou-lhe a visão. Escutou vozes que pareciam vir de longe, mas não foi capaz de compreendê-las.

- Vejam! Ele está acordando! Afastem-se, afastem-se! Ele precisa respirar.

Carlos sentiu um pano úmido sendo passado em sua testa e peito. Tentou, mais uma vez, abrir os olhos. Aos poucos, foi tomando consciência e percebeu que estava deitado no chão do escritório. Os colegas todos o olhavam com surpresa.

- O que aconteceu? – Carlos perguntou confuso.
- Você desmaiou de repente. – explicou uma colega.

Foi, então, que ele se lembrou do motivo. Seu peito apertou e uma angústia profunda invadiu-lhe a alma.

- O vice-presidente morreu? O “nosso” vice-presidente? – ele checou, afinal, quem sabe não teria entendido errado?
- Sim, o helicóptero no qual estava caiu hoje às seis da manhã, uma tragédia. Morreram as três pessoas a bordo: ele, o piloto e um jornalista. Mas não pense nisso agora, temos que saber o que você teve.

Subitamente, Carlos sentiu-se melhor. Então, não fora ele que matara o vice-presidente? Que alívio! Mas, logo em seguida, pensou que ainda tinha um problema. Alguém comera sua torta envenenada. Com ajuda dos colegas, ele se levantou e foi para sua sala. Não aceitou nenhum conselho para ir ao serviço médico e passou o resto do dia trancado no escritório.

O dia de trabalho chegou ao fim e ninguém mais havia passado mal. No dia seguinte, sexta-feira, não haveria expediente, pois seria o enterro dos restos mortais das vítimas do acidente. Por sugestão da mulher, Carlos continuou levanto a fatia de torta, para que ninguém desconfiasse de nada.

Mas isso foi há seis meses atrás e as tortas de Carlos nunca mais desapareceram...

5 comentários:

Natanael Teófilo disse...

Só faltava o jornalista e o piloto serem da empresa também!

Cristiane Lira disse...

É... e se o foi o piloto quem comeu a torta, então, foi triplo assassinato, rsrsrs.

Ney disse...

Acho que foi a assessora do presidente pois trabalha com a imprensa. Roubou a torta e deu para o jornalista para agradá-lo. Este por sua vez, passou para o piloto pois devia estar de dieta.

Cristiane Lira disse...

Neyzinho, se você trabalhasse nessa empresa, estaria morto, não? kkkkkkkk, lembra da torta lá da gráfica? caraca!

Safira disse...

OI, Cristiane, Sou Safira, amiga da Lenira e já trabalhei no CENPES e ai na biblioteca. Adoro ler e amei o seu conto, verdadeiramenre original.Quamdo for lançar o livro, convide-me. Continue escrevendo.