terça-feira, 26 de julho de 2011

Remorso

No momento em que ouviu alguém chamá-lo, virou-se e viu sua mãe. Ela usava um vestido azul desbotado e um avental velho. Tinha o cabelo maltratado e calçava chinelos muito gastos, maiores que seus pés. No sorriso sincero lhe faltavam alguns dentes. Por um instante, ele quis correr até ela, mas sentiu uma enorme dor no peito que o impedia de se mexer. Há muito que não tinha notícias dela, nem dos irmãos mais novos. Tentou fingir que não a vira, nem ouvira, mas assim que lhe dera as costas, sua voz soou alto: – Chiquinho, meu filho, vem comigo, mamãe está aqui...

Como ela podia chamá-lo de Chiquinho na frente de todo mundo? – Fez um esforço para olhar em volta e só viu pessoas desconhecidas. Ele não entendia como sua mãe o achara ali, depois de tanto tempo e tão longe de casa. Havia ido embora aos 17 anos, levando consigo o relógio de ouro do pai, que tinha sido ganho numa aposta muito justa quando encontrou o Coronel Viriato na estrada, pronto a dar o tiro de misericórdia em um touro premiado que estava atolado na lama do rio. Quando seu pai se ofereceu para ajudar, o Coronel riu, era franzino demais, não teria força para tirar o bicho dali, melhor era acabar logo com aquilo metendo uma bala certeira entre os olhos do animal. Mas seu pai não desanimou e pediu ao Coronel que lhe desse uma chance e se ele não conseguisse, então, que o animal fosse morto. Mas o Coronel gostava de jogo e transformou aquilo numa aposta. – Se seu pai conseguisse tirar o touro do rio, sozinho, ele lhe arrumaria um pedacinho de chão e, também, o relógio que trazia no pulso; mas se perdesse, teria que trabalhar seis meses nas plantações do Coronel sem ganhar um tostão. – Ele lembrava que o pai sempre tremia quando contava essa parte da história, falando do frio que sentira na espinha só de imaginar se não tivesse conseguido cumprir o prometido. A mãe estava de barriga e ele, o mais velho, já tinha dois irmãos e uma irmã. – Como é que o pai iria fazer se tivesse que trabalhar seis meses de graça? – O problema é que seu pai só pensava no pedaço de chão que a aposta valia, pois isso era sonho que poucos homens como ele realizavam antes de morrer.

Dizem que o animal conhece o que se passa no coração de um homem e que, às vezes, age em nome da Providência, por isso, deixou que seu pai o retirasse do rio sem lhe fazer mal algum. Os peões ficaram de queixo caído e de cara murcha diante do feito. E sendo o Coronel um homem de palavra, na mesma hora, tirou o relógio do pulso. Seu pai – que nem sabia ver as horas – não queria receber o relógio, só desejava o tal pedacinho de chão. Mas o Coronel insistiu e disse que ele guardasse para uma necessidade futura, que aquilo era peça de muito valor e poderia ser útil para a educação dos filhos.

Ele estava tão envolvido nessa lembrança que mal percebeu duas ou três vozes que o chamavam com persistência. Sua mãe permanecia ali, sorrindo gentilmente a espera de um abraço. Era impossível olhá-la nos olhos depois de 40 anos. Ele partira uma semana depois do pai morrer de tuberculose. A mãe fizera uma trouxa de pano de algodão cru, que estava sendo guardado para o enxoval da irmã caçula, mas como ela só tinha oito anos, com certeza, ele já estaria de volta até o dia do casório, trazendo presentes e um futuro melhor para todos. Na trouxa improvisada ia um pouco de farinha, um pedaço de charque, três bananas e alguma água barrenta para beber no caminho. Roupa, só a do corpo, e embrulhado num lenço encardido, ia o relógio de ouro do Coronel Viriato. Depois de duas semanas de carona em caminhão e de dormidas ao relento, rezando para não ser roubado, chegou ao destino. Com muita dificuldade conseguiu encontrar o amigo do Coronel, homem de boa índole, que o ajudou a obter um preço justo pelo relógio. Com o dinheiro, ele pagou sete meses de aluguel adiantados em uma vaga para rapazes. Vendo que era inteligente e esforçado, o amigo do Coronel lhe deu um emprego de contínuo na empresa da qual era dono. Aos poucos, foi se deixando seduzir pelas roupas que os homens usavam e pelos cabelos sedosos das mulheres. Tudo era tão diferente daquela terra miserável de onde viera. Decidiu estudar a noite e conseguiu uma vaga de Auxiliar Administrativo em outra empresa, onde ninguém sabia nada sobre sua vida. Logo, deixou definitivamente de ser Chiquinho e se tornou Francisco Ramos Silva, filho de um comerciante do interior e de uma professora primária. Hoje, ele era um rico executivo e sua história havia se tornado tão real, que ele não poderia mais voltar atrás.

E lá estava ele, de um lado, continuavam a lhe chamar com insistência: – Ei, ei, fica com a gente! – do outro, sua mãe lhe esperava pacientemente, com o mesmo vestido azul do dia em que partiu: – Chiquinho, meu filho, me dá um abraço. Eu senti tanto a sua falta. – ele pensou em correr para os braços dela, mas o remorso o impedia. Não sentia mais vergonha da mãe humilde e pobre, pelo contrário, sentia vergonha de si mesmo e da forma como a abandonara.

De repente, um gosto estranho lhe surgiu à boca e um líquido espesso e quente lhe saiu em jatos da garganta. Sentindo muito medo de perder sua mãe mais uma vez, esqueceu tudo e todos e correu a se atirar em seus braços: – Mãezinha, me perdoa, eu não fiz por mal, por favor, me perdoa! – e agarrados um ao outro, ela respondeu docemente: – Claro que eu o perdoo, está tudo bem agora, eu vim te buscar, vamos.

E, assim, naquele primeiro dia de verão, as pessoas começaram a se afastar, fugindo da chuva forte e repentina que caía lavando o sangue daquele corpo estendido no chão que dera seu último suspiro em meio a palavras mal pronunciadas que soavam como “perdão”, “mão” ou qualquer outra coisa parecida com isso. Era só mais um atropelamento por imprudência do pedestre. Não havia mais nada a ser feito e cada um seguiu seu rumo, procurando abrigo da chuva, enquanto Francisco Ramos Silva tinha a carteira, o celular e os sapatos saqueados por dois meninos de rua e seu corpo aguardava a remoção.

2 comentários:

Cristiane Lira disse...

Você também se arrependeria...?

Unknown disse...

faço mesma pergunta da Cris...^^